O passado nazista de Chanel. E o de Hugo Boss também

Por Pedro Diniz

Não é a primeira vez que a estilista francesa Gabrielle Coco Chanel (1883-1971) é apontada como espiã nazista durante a Segunda Guerra Mundial, mas um documentário do canal France 3 exibido na semana passada confirmaria, por meio de um documento colhido nos arquivos do Ministério da Defesa francês, o vínculo da designer com o serviço de inteligência alemão, o Abwehr.

Assim como na versão do jornalista americano Hal Vaughan descrita na biografia “Dormindo com o Inimigo” (2011) e execrada pela marca Chanel à época do lançamento, a estilista mais importante da história da moda francesa teria atuado a partir de 1940 até o final da guerra, em 1945, sob o codinome Westminster.

A estilista francesa Coco Chanel em foto de 1936, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial.  Lipnitzki/ Roger-Viollet/Divulgação
A estilista francesa Coco Chanel em foto de 1936, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Crédito: Lipnitzki/ Roger-Viollet/Divulgação

O nome fazia referência à antiga relação de Chanel com o Duque de Westmister, esta descrita no livro de Lisa Chaney, “Coco Chanel: An Intimate Life”, e foi dado a ela pelo Terceiro Reich devido ao seu envolvimento, na época da guerra, com o barão e membro do alto escalão de espionagem nazista, Hans Günther von Dincklage. Dincklage teria influenciado a adesão da amante ao partido de Adolf Hitler.

No documentário “A sombra de uma dúvida. Os artistas sob a Ocupação”, o canal público francês esmiúça uma viagem de Chanel a Madri, em 1943, para negociar um acordo de paz com o embaixador britânico na Espanha durante o conflito, Samuel Hoare, que beneficiaria os alemães.

Documento do serviço secreto francês que provaria a identidade secreta de Coco Chanel. A foto é do livro "Dormindo com o Inimigo", de Hal Vaughan. Reprodução
Documento do serviço secreto francês que provaria a identidade secreta de Coco Chanel. A foto é do livro “Dormindo com o Inimigo”, de Hal Vaughan. Crédito: Reprodução

À agência Efe, o arquivista Frédéric Quéguineur, que descobriu documentos reveladores sobre Chanel, a cantora Edith Piaf e o ator Maurice Chevalier, relata que o registro com o nome da estilista, seu número de oficial e o codinome fora descoberto há dois meses dentro de uma remessa de arquivos confiscada  na Alemanha em 1945 e escondida logo depois pelo serviço secreto francês.

O filme entra ainda em outra seara controversa desse possível, e agora plausível, colaboracionismo de Chanel com o nazismo: a relação conturbada com a família judia Wertheimer, para a qual havia vendido os direitos de comercialização do perfume Chanel nº5.

Na época, de acordo com o documentário, a estilista queria de volta o controle sobre sua criação de maior sucesso  e teria usado a influência no partido nazista para tirar da família os direitos. O plano não deu certo porque os Wertheimers haviam passado durante a 2ª guerra o controle da empresa para um amigo não-judeu, o industrial Felix Amiot, que a devolveria após o fim do conflito.

A família hoje detém não apenas o perfume, mas toda a marca Chanel.

Procurada, a Chanel ainda não se posicionou sobre o caso. Ao site americano “WWD”, no entanto, a marca afirma que o documentário não adiciona nenhum fato novo à história da estilista pois não esta claro o envolvimento da estilista com  partido.

Sobre a viagem a Madri, a etiqueta afirma que não é possível esclarecer por meio de provas qual era o conteúdo das negociações, intermediadas por ela, entre os aliados e o partido nazi.

“Mais de 70 trabalhos foram escritos sobre Coco Chanel. É difícil interpretar a história 70 anos depois do fato”, disse a marca ao site americano. O tom comedido da marca é bem diferente do usado no comunicado enviado à imprensa em 2011, quando foram lançadas as polêmicas biografias que vinculavam a fundadora da casa de moda com o nazismo.

“Gostaríamos de encorajá-los a consultar livros mais sérios sobre Gabrielle”, disse a grife no texto. “Ninguém sabe bem seu papel no caso, há muitas versões e isso sempre será um mistério.”

O “BOSS” DA GUERRA

Não é apenas o passado controverso de Coco Chanel que assombra o mundo da moda e, principalmente, os donos de grifes icônicas. Os proprietários da marca alemã Hugo Boss decidiram só em 2011, após décadas empurrando a poeira para debaixo do tapete, assumir que seu fundador, Hugo Ferdinand Boss, havia usado trabalho forçado dos judeus na Segunda Guerra.

Ele produzia os uniformes da chamada Juventude Hitlerista (crianças e adolescentes do programa de ensino do Terceiro Reich) e de todos os oficiais da SS, a polícia nazista.

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Multado por conivência com o genocídio, Boss morreu três anos após o fim da guerra e sua família enterrou o passado. Só em 1997, após uma revista austríaca recuperar a trajetória do fundador da marca de moda mais famosa da Alemanha, os fatos voltaram à tona.

O grupo japonês de investidores Leyton House, que comprou mais de 60% das ações da grife, financiou o livro “Hugo Boss, 1924-1945 – Eine Kleiderfabrik zwischen Weimarer Republik und Drittem Reich” (Hugo Boss, 1924-1945: A História de uma Fábrica de Roupas Durante a República de Weimar e do Terceiro Reich) para contar a história sangrenta da marca.

“Nós nunca escondemos nada e sempre buscamos trazer clareza ao que aconteceu no passado. É nossa responsabilidade com a empresa, com nossos funcionários, nossos clientes e com todos os interessados na história da Hugo Boss. A empresa também lamenta profundamente por aqueles que sofreram ofensas e passaram por dificuldades na fábrica dirigida por Hugo Ferdinand Boss sob o jugo do nazismo”, disse a grife no comunicado.

A atitude da Hugo Boss de financiar um livro para desenterrar o passado do seu fundador deveria ser reproduzida pela Chanel, que elucidaria o capítulo “cinzento” (adjetivo usado pela própria marca para referir-se ao período) da biografia da estilista.

Além de prestar um serviço à literatura de moda, o livro poderia servir como um pedido de desculpas formal às famílias impactadas pela guerra e, por conseguinte, evitaria especulações infundadas — agora, inevitáveis– que podem macular o legado de Chanel.

**ATUALIZAÇÃO**

A grife Chanel enviou comunicado à Folha após a publicação da matéria. Leia a tradução livre do texto.

“Este relatório, mesmo que oriundo dos arquivos franceses, não acrescenta nada de novo ao que já é conhecido sobre o assunto abordado por diferentes biógrafos. Mais de 80 trabalhos foram escritos sobre Gabrielle Chanel. Nem todos os biógrafos concordam com ele, para dizer o mínimo, como prova de que é difícil interpretar a história 70 anos após o fato.

Gabrielle Chanel teve um caso de amor com um aristocrata alemão durante a guerra. Isto, obviamente, não era o melhor dos tempos para ter um caso com um alemão.

Parece que Gabrielle Chanel foi capaz de se comunicar com Churchill e se ofereceu para agir como uma intermediária entre os aliados e os alemães para ajudar com um acordo de paz. Este documentário confirma esta versão. Qual foi o papel [neste acordo] que ela assumiu [contra ou a favor dos alemães]? Há versões diferentes.

Alguns historiadores descrevem Mademoiselle Chanel como uma mulher bastante ingênua no campo político, facilmente manipulaa por pessoas próximas a ela. Outros a veem como uma espião de nível superior, enquanto que outros a veem como uma intermediário que tentou negociar um acordo de paz.

Apesar de Mademoiselle Chanel ter sido um artista visionária e inovadora de moda, sua vida tem suas zonas cinzentas e, inegavelmente, ainda mantém alguns de seus mistérios nos dias de hoje.”